terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Memórias da minha infância.

O grande culpado do que aqui vou escrever chama-se Joel!
Joel é um personagem... um gajo... um tipo porreiro... um marado do catano... chamem-lhe o que quiserem. Para mim... esse singular personagem é um daqueles irmãos que escolhi, que fui eu a adoptar e não os meus pais. E o post de hoje deve-se a esse sujeito pois começou em jeito de comentários ao meu facebook a falar sobre a nossa pacata e simples infância. E quando digo a nossa bem podia dizer "de qualquer rapazito nascido pelas inícios de oitenta em RM city".

RM era, à data da minha infância, um lugar mais ou menos sossegado, um lugar onde os melhores "polidesportivos" eram o "larguinho" e o adro da capela da Sra. das Neves. Jogavamos à bola sempre que dois se encontrassem na rua (no tempo em que as ruas se chamavam "caminhos"), e o futebol era a pior modalidade do mundo para todos aqueles que tinham no quintal coisas susceptíveis de partir pois, não raras vezes (como quem diz 20 vezes por dia) a bola ultrapassa a vedação exterior do nosso "estádio" (como quem diz: ía para o quintal, eira ou cozinha de alguém) e atingia algo ou alguém. Não havia árbitro, o jogo era interrompido apenas quando passavam carros ou os camiões grandes carregados de pedra saída dos "Cavacos".

Quando não havia "quórum" para jogar à bola (meiinho, ceguinho, parede, eram as modalidades em voga) jogavamos ao espeto (atirar um ferro para espetar na terra e unir os pontos na tentativa de fechar no nosso perímetro o adversário), brincavamos ao pneu (literalmente um pneu guiado por um ferro), jogavamos ao berlinde (ou devo dizer "à esfera"? A esfera era uma espécie de Santo Graal!! Porquê? Porque a esfera não partia! O sonho de qualquer miúdo era descobrir em casa, no mecânico mais próximo ou no lixo um rolamento para "fifar" as esferas e possuir assim o Santo Graal! Dependendo do tamanho uma esfera podia valer uns 50 ou 100, no limite até 200 calendários ou berlindes!!)

Suspiro!!

Para que jogavamos ao berlinde? Para ganhar calendários (outro tesouro)!! Naquele tempo não havia gajo que não tivesse bolas (entenda-se: berlindes, esferas e bolas de futebol) e calendários (com motas, jogadores da bola, carros, gajas... colecções da CAIMA eram ouro, e calendários de campanhas eleitorais eram "moeda com curso legal" - seguramente cheguei a ter uns 50 calendários do Sr. Alberto Figueiredo)... enfim!!! Tempos!!

O território era frequentemente delimitado/conquistado em torneios de futebol... e quando a coisa aquecia decidia-se à pedrada!! (Ainda hoje não consigo perceber como é que nunca ninguém morreu!! Eu pelo menos não me recordo de alguma vez atirar uma pedra a alguém que não fosse directa à cabeça!! É claro que eramos todos "ratos", ou "ladinos"... no fundo, parecíamos tropas americanos - atiravamos a matar, escondidos atrás dos muros, mas nunca acertavamos em ninguém (pelo menos de forma grave)! Tantas batalhas tive na "cangostinha" que fica ao lado da casa da minha avó, perto do "Tio Garrincha".

Tal como o Glorioso também nós em tempos tivemos duas "catedrais": a poça e os cavacos (o pinhal do Cigano é "ad eternum" - de geração em geração.

Na poça e nos cavacos nasceram muitos talentos, fosse da bola ou do ferro velho. Um qualquer frigorífico velho dava um barco para irmos "navegar" na poça... quando a coisa corria mal... bem... era "coça" na certa ao chegar a casa (isso de violência infantil é coisa moderna! Um gajo naquele tempo era rijo... quando muito em casa andava-se à pancada... agora... "ah e tal sou criança e levei"... isso não havia! Havia umas palmadas, mas em bom tempo - hoje, chamar-lhes-ía "educação no momento certo" - foi assim que aprendi os limites dos actos e a responsabilidade pela minha liberdade.

E nesta minha infância, todos os anos havia "Agosto"! Agosto era tempo de Sra. das Neves, de arraial com lâmpadas (vulgarmente conhecidas com alvo para os "treinos livres" e competição de "a minha fisga é maior que a tua") e de AVECs!!

O AVEC era não raras vezes o nosso primo da França, ou o primo do nosso amigo... mas era de fora e... bem ... se viesse acompanhado de AVECAS... tinha as férias no calvário! Era a "luta pela dominação da raça visitante" - sucediam-se os rituais de pavoneamento pelos caminhos, a "pancada nos AveCs" atrás da capela da Sra das Neves... eram tempos do raio!

Torneios na praia de RM...
Bem, RM na maré-vaza tinha um grande areal onde toda a gente podia jogar à bola! Para rentabilizar espaço era um jogo com literalmente "toda a gente" chegando-se a marcas míticas de 15 a 20 para cada lado! Era lindo! Sabem porquê? Porque era ali que se fazia a união de um povo de geração em geração. Tínhamos algo nosso, a nossa praia, a nossa Sra. das Neves, a nossa Sra. da Paz, o nosso larguinho, as nossas fontes.

E foi por lá que cresci! Como grande parte dos meus amigos, filho de emigrante, e com meia família fora, os fins de semana eram tempo de família... mas só até à hora do almoço, depois era no pinhal do Cigano a jogar à bola toda a tarde! Eram torneios RM vs Cepães, Igreja ou quem calhasse. Perder um jogo era perder tudo! Ganhar ou perder era desporto mas nós preferíamos correr para ganhar. Assaltar cenouras no regresso a casa... era ganhar defesas (qual Actimel, qual carapuça!)

Loucuras:
Eu e o Joel tínhamos skates e falta de juízo qb!! Devia ter eu uns 6 anos quando o meu avô de RM me deu o meu primeiro sk8 (vermelho e branco, trucks de alumínio - era um ferrari dos sk8s na época), mal ele sabia que aquilo andava literalmente que nem um Ferrari nas corridas que fazia com o Joe pelas Lages e por Agrelo abaixo. Se podíamos viver com juízo?? Podíamos... mas não era a mesma coisa :)
Estes míticos sk8s foram as primeiras pranchas (merecedoras do nome) que se apreciaram para skimming, numa mítica tarde em que tiramos os trucks e fomos para o mar com a tábua sem as rodas deslizar.

Surfistas:
Quase toda a gente em RM tinha um sabonete (agora também"lol")! Sabonete, naquela altura, era uma daquelas pranchas de bodyboard que se vendiam um pouco por toda a parte e que quase toda a gente tinha uma para "ir curtir umas ondas". Fatos de neoprene? Eram coisa rara. A grande maioria de nós surfava "à havaiana" - calção e t-shirt "pra puxar estilo" (só 10 anos depois descobri que eles têm água a 25º e nós a 15º - o neoprene dá mesmo jeito).

BTT:
Bem, 1994 foi o nosso nascimento para as bikes. Dois putos raquíticos em cima de uma biclas de aço (era o melhor que havia) com equipamentos de lã (que saudades da minha primeira camisola "fifada" ao meu tio, da Motobecane, e o meu capacete Sofati com autocolantes da Nike e o dizer "No Limits, No Rules"). Treinos bi-diários em Julho e Agosto com uma rotina matinal: eu acordava o pai do Joel, o pai dele acordava a mãe, a mãe acordava o gajo e meia hora de seca à porta era um bom aquecimento para o treino.

Hoje, 15 anos depois, isto é apenas uma síntese de meia dúzia de lembranças que permanecem gravadas em mim. A este episódios muitos se somariam como o meu nariz rachado numa escada, o meu circuito para andar de mota quando arrancava encostado ao muro porque não chegava com os pés ao chão, as "guerras de gangues" no "Ciclo" (5.º e 6.º anos)... tanta coisa que só de pensar no assunto começo a rir sem vontade de parar.

No fundo, no meu tempo andar à pedrada era coisa natural, ter uma fisga era tão sagrado como ir à missa ao domingo, andar de calças rompidos com joelheiras de napa era moda, a camisola de lá feita por alguém cá de casa era a melhor prenda que se podia ter a par de uns carapins, brincar com carrinhos em estradas desenhadas num chão qualquer com um caco de tijolo era um estímulo à criatividade (quando se arranjava giz a escola é que ficavam fixes, ou então quando "desviava" giz colorido à minha mãe), trepar árvores tal qual macaco era a prova inequívoca de que toda aquela geração se predispunha a subir na vida pelo seu próprio esforço, improvisar brinquedos com latas de conserva, pacotes de leite ou um qualquer pedaço de ferro velho era a coisa mais natural do mundo, deixar cair caramelos e depois pegar dar duas "sopradelas" e "morfá-lo" era "ganhar defesas", andar sempre por perto de um carrinho de mão na ajuda das pequenas tarefas agrícolas da família era tão sagrado na parte da tarde como ir na parte da manhã à escola.

Não havia tantos canais na televisão e o acto de ver tv era coisa chata! Como se não bastasse ter só dois canais (ás vezes apanha a Tve) o "zapping" era algo moroso - levanta do sofá, mudar de canal, volta a sentar... não havia tele-comandos.

Bem vistas as coisas, à distância de 15 anos, o nosso país mudou muito e apesar de tudo mudou para melhor (mesmo que muitas vezes digamos o contrário)!

Se os tempos passados eram maus? Nem pensar! Eram os "tempos daquele tempo" e a gente era feliz com o que tinha, e a prova dessa felicidade é que deixaram marcas e saudades.

Que os miúdos hoje em dia pensam que este testemunho é de alguém com 40 anos não duvido... mas não foi assim há tanto tempo. Os tempos são outros, mas em boa verdade, aqueles eram tempos em que os pais deixavam os filhos ser filhos, deixavam que a mãe natureza e a sociedade fizesse homens. Hoje fazemos autómatos que ocupam os dias entre escola, atls, música, pintura, ballet, futebol, karaté... deixem o catraiame sair à rua, trepar pinheiros, brincar com cacos. Ensinem-os a brincar com as coisas simples (quem não tem saudades daquelas "motos" feitas de uma roda na ponta de um pau com um "guiador" pregado?), contem-lhes que há formas de brincar fora de casa, que ainda há jogos para jogar no jardim.

Talvez um dia esta saudade me faça escrever algo (eu que detesto história) sobre os jogos simples da minha infância, para que reste ao menos um registo de que não há muito tempo havia neste país uma geração diferente: "A última geração das tv's a preto e branco".

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